sexta-feira, 26 de abril de 2019

ME - MÓ - RI : A → ditongo ou hiato

Brasil é diversidade sem fim. Na educação, na economia, na culinária, no estilo, na cor, no gênero, na música e, inevitavelmente, nas regras da língua. Então, pare de fazer drama.

Deixando de lado aquelas regras com e sem exceções, vamos tratar agora de uma que é ampla, diversa, bem vovozona, quase mãe de sete. Tudo bem que se trata de apenas duas possibilidades, mas, em comparação com as demais regras, essas duas quase valem por mais de seis.

Primeiro vamos tentar responder a uns porquês da vida. Homero usa a palavra phthoggos (tente lê-la) ao se referir ao canto ou grito longo, sedutor e libidinoso das sereias apreciado pelo audacioso Odisseu. Assim, se uma delas grita duas vezes, ela produz um di-phthoggos! E, sendo dois sons, indubitavelmente haverá entre eles um espaço, um silêncio, um hiato (do latim hio 'bocejar; fender-se' e hiatus 'abertura; cova'). E dessa forma, bem mais rápidos que os 21 dias de gestação de uma rata, demos à luz as três classificações dos encontros vocálicos (procure o "tri" nas entrelinhas).

Agora, atenção. Estamos explorando a dimensão fonológica ou sonora da língua, e não a escrita. Na escola aprendemos que "igual" tem um ditongo, com referência direta às cinco vogais. Porém, sopa de 26 letrinhas à parte, o brasileiro pronuncia [igu'au] (numa representação livre), tratando-se, na prática, de três sons vocálicos. Sons vocálicos representados por consoantes aparecem também em:

Vejam. Lá vem o sol. Enxáguem o carro!

['vejãũ ditongo
['vẽĩ ditongo
['sóu ditongo
[ẽĩ'xaguĩ tritongo

Dito isto, sabe-se que certas palavras, a depender da sílaba tônica, alternam entre ditongo e hiato, com alteração do sentido. É o caso de secretária (pessoa) e secretaria (lugar). O encontro vocálico da última é, sem dúvida, um hiato (se-cre-ta-ri-a). Por outro lado, observe como a primeira é apresentada no minidicionário Aurélio:



Os dois-pontos usados no meio das vogais representam a nossa regra flex: a facultatividade de separação. Isso é mais corrente em palavras com acento gráfico e terminadas com vogais (fêmea, aéreo, família, cárie, hilário, mágoa, água, tênue, árduo). Apesar de não alterar o sentido, essa dupla ação modifica: o número de sílabas, a posição da sílaba tônica e o tipo de encontro vocálico.

AR-MÁ-RIO  trissílaba, paroxítona e ditongo
AR-MÁ-RI-O  polissílaba, proparoxítona e hiato

Quando juntas, ocorre uma sinérese (sin = junção). Quando separadas, uma diérese (di = divisão).

O nosso acordo ortográfico afirma que esses tipos de palavras têm proparoxítonas aparentes (ou relativas ou eventuais), dada a possibilidade de hiato e o fato de que todas elas são acentuadas, seguindo, portanto, a regra da língua (na qual não há exceção!) em relação às proparoxítonas.

Esse fenômeno ocorre também no meio de certas palavras:

pre:o-cu-pa-do
sa:u-da-de
mi:u-de-za

Esta é uma regra muito cara aos poetas, uma vez que os ajuda na métrica dos versos:

Que / sau / da / de, / que / ri / da

Se o poeta precisa que esse verso tenha 7 sílabas poéticas, ele tem a opção de considerar "sa-u".

Cabe agora um alerta. Apesar dessa dupla possibilidade em finais de palavras, as gramáticas e os livros didáticos priorizam o DITONGO (e portanto a PAROXÍTONA). Isso porque, no fim da linha de uma redação, o hiato nesses casos é proibido!

O hiato e a semivogal

As gramáticas definem hiato como o encontro de duas vogais pertencentes a sílabas diferentes. E o que acontece quando a separação é entre uma vogal e uma semivogal?

AL-DEI-A

Existe hiato? 
Na realidade, ocorre aí um hiato entre duas semivogais de dois ditongos, pois, segundo estudos fonológicos, o som do "i" aparece nas duas sílabas (al-dei-ia). Para fins pedagógicos, os gramáticos afirmam então que, sim, o ditongo e o hiato existem simultaneamente, declamando um "i" uníssono.


Referências bibliográficas

BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 38. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015, p. 70.
BENTATA, Hervé. O canto da sereia: considerações a respeito de uma incorporação frequente da voz materna. Teoria Psicanalista. Reverso. Belo Horizonte. Junho/2009. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/reverso/v31n57/v31n57a02.pdf. Acesso em: 26 abr. 2019.
BRASIL. Senado Federal. Acordo ortográfico da língua portuguesa: atos internacionais e normas correlatas. 2. ed. Brasília. Senado Federal. Coordenação de Edições Técnicas. 2014, p. 23.
CEGALLA, Domingos Paschoal. Novíssima gramática da língua portuguesa. 48. ed. São Paulo: Editora Nacional, 2008, p. 25-27.
CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. 5. ed. Rio de Janeiro: Lexikon, 2008, p. 62, 63, 82-84.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Míni Aurélio: o dicionário da língua portuguesa. 8. ed. Curitiba: Positivo, 2010.
VIVES, J.-M. O silêncio das sereias de Kafka: uma aproximação literária da voz como objeto pulsional. Université de Nice Sophia-Antipolis. Disponível em: http://www.omarrare.uerj.br/numero11/pdfs/robson.pdf. Acesso em: 26 abr. 2019.

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